Aguarrás

Entre os brinquedos para as crianças às vezes os Reis Magos deixam também, sem qualquer vontade, presentes para os pais. Não são esses embrulhos de última hora que, um bocadinho afastados, levam escrito o nome do papá ou da mamai. São outros. São essas horas de domingo que depois passaremos com os filhos a construir castelos, montar as vias do comboio, pintar com os dedos (e lavar as paredes) ou mesmo, como foi em esta ocasião, a ensamblar e colorar um carro de madeira, quase um Ferrari. O pai dedicou o seu carinho, os seus pinceis e a tarde do domingo a decorar o carro que deixaram os Reis. Depois, já contra a noite, abriu a garrafinha de aguarrás para limpar o material e as nódoas da mesa. Qualquer garrafa pode ser a do gênio, e a da aguarrás tem encerrado aquele que enterra os seus pés na infância, nas horas de admiração pelo nosso pai, na inveja da sua habilidade, nas tardes a olhar para o seu trabalho demorado. Isso estava a fazer o Nicolás: olhar para o seu pai limpando pinceis. O cheiro da garrafa ligou a sua curiosidade e perguntou:
-O quê é isso, papá?
-Aguarrás, Nico. É para limpar os pinceis, porque não sai apenas com água.
Silêncio. O cheiro a ficar colado nas mãos do pai e na memória do filho. O Nico a assomar os olhos por cima da pia, a procurar. Silêncio. A procurar. Silêncio. Nas pontas dos pés. Silêncio. Eis então que salta a pergunta:
-Mas... onde é que estão as rãs?
E o pensamento do pai, devagar, a debulhar a palavra. A demorar um bocado entre a voz e a pergunta. Entre a procura do filho e a distância do simples.
A explicaçao va começar por um sorriso.
-Não, Nicolás, cá não há rãs...