A conversa com crianças pode ser mesmo perigosa. Podemos, os maiores, ficar engasgados na pausa que segue a uma pergunta, emaranhados no nosso próprio desconhecimento ou incapazes de traduzir para palavras quotidianas o que apenas sabemos com grandiloqüência. ´
Nicolás demora muito a comer e enquanto eu escovo os meus dentes, pronta para voltar ao trabalho, ele ainda mastiga os seus gravanços com tomate. Levanta-se na cadeira ajoelhado contra o respaldo e quase a cavalo dispara a sua pergunta :
-Olha mamai!
-mmm?? (ainda a escova na boca)
-O quê quere dizer “libertad”?
Felizmente não posso abrir a boca ainda, preciso limpar o sabão dos dentes e enxaguar. Disponho de uns segundos para optar por corrigir a sua incoerência bilíngüe e safar, deixar correr o tema, posso também chatear-me pelo seu comportamento mal sentado à mesa e sem comer, ou mesmo procurar palavras em filosofia aptas para os quatro anos.
-Mamai!
-Já vou... digo entre dentes. Estou quase decidida a tentar explicar. Mas de pronto tenho medo da armadilha. E se digo qualquer coisa que depois me vai arrojar reclamando a sua miúda liberdade?
Seco a boca. Desligo a luz do banho. Caminho e vou dizendo “senta bem, acaba o jantar, vou chegar tarde outra vez, Nico, ainda assim?” E só então é que falo:
-Libertad, diz-se também liberdade, Nicolás... em galego, liberdade....é.... pois..., liberdade é que tu sabes o que tens que fazer e ninguém tem que dizer-cho. Como ninguém te manda porque tu já sabes o que tens que fazer, pois então, és livre, tens liberdade...
Estou arrependida e tento sair da minha resposta:
-Também é o contrário de estar preso . O cão de Evellym está atado, não tem liberdade, mas a Susa está libre, não está atada, tem liberdade...
Nico continua a comer, concentrado, e eu ainda espero o boomerang da minha improvisada resposta.
José Luís Peixoto na Feira do Livro de Miami, 2024
Há uma semana
Qué miedo!! No me extraña que te lo pensaras...
ResponderExcluirbejinhos